domingo, 9 de janeiro de 2011

O Teorema de Lilith

Lilith mantivera, por todos os anos de sua vida, uma rotina relativamente organizada e sem grandes acontecimentos, como são as rotinas propriamente ditas. Desde criança tinha horário fixo para acordar, dormir, escovar os dentes, alimentar-se, brincar, estudar, executar tarefas de casa, tomar banho e tomar remédios. Sua saúde sempre fora algo muito sensível, e, em sua vida, de vigoroso mesmo só havia os cumprimentos de horários, de forma quase ou tão pior quanto uma religião xiita.

Cresceu sem grandes realizações em sua vida. Seu campo social – amigos, família, familiares – nunca foi tão grande ou interessante a ponto de despertar alguma coisa de diferente na garota. Sempre mostrou-se um pouco mais apática do que os jovens de sua época. Ela observava que, enquanto alguns concentravam-se em fazer o maior número de idiotices possíveis no período de sua existência conhecido como adolescência, e que outros simplesmente tentavam ser alguma coisa na vida além de um zero à esquerda. Procurava encaixar-se em algum dos dois grupos e percebeu que não obtivera sucesso algum em nenhuma das tentativas e chegou à conclusão de que a fadiga era tamanha, de modo que a impedia de preocupar-se com estas questões. O tédio era tão esplêndido em sua magnitude que ao menos sentia algum remorso ou ansiedade para com este tipo de sentimento.


Enfrentou toda a escola sem grandes problemas. Não foi uma aluna com notas brilhantes, e embora nunca tenha ficado de recuperação jamais fez algum trabalho brilhante nas feiras de ciências que se repetiam ano após ano, elevando alguns alunos aos céus e afundando outros mais ainda do que já estavam predestinados a sucumbirem. Nunca arranjou uma briga, e tampouco uma bela amizade; nunca fez um gol, e menos ainda fez fiasco nas aulas de educação física, das quais jamais fez qualquer gosto em sua vida. Aliás, não fazia muito gosto de bastante coisa. Matemática, física, química, biologia? Nem pensar. Português, literatura, língua estrangeira, educação artística? Menos ainda. Simplesmente levou uma vida escolar medianamente, sem questionamentos esplendorosos sobre a origem do Universo ou os infindáveis radicais gregos ou latinos; tampouco preocupou-se com Pitágoras e seu teorema, Einstein e a relatividade, jamais quis saber se Lamarck ou Darwin estava mais certo sobre a Lei de Uso ou Desuso ou Seleção Natural.

Sua puberdade passou e veio a vida adulta. Na verdade Lilith escondia dentro de si um questionamento que, se fosse posto às claras, seria responsável por criar grandes problemas. Em seu íntimo ela se perguntava incessantemente qual era a diferença, a sutil diferença, entre ser criança, adolescente e adulta. Ela quisera saber isso quando tinha apenas 8 anos da idade. Fez 15 e nada da resposta. Agora contava com 28 anos e nada de se aproximar da bendita solução para o seu teorema, o seu próprio teorema, que ela, em certo lapso de um egocentrismo divertido e muito plausível, havia achado mais interessante do que o de Pitágoras. Não era uma vã inocência, mas sim uma sinceridade absurda. Embora absurda, ainda assim, sinceridade.

Teorema é um termo introduzido por Euclides, em Elementos, para significar "afirmação que pode ser provada". Em grego, originalmente significava "espetáculo" ou "festa". Atualmente, é mais comum deixar o termo "teorema" para apenas certas afirmações que podem ser provadas e de grande "importância matemática", o que torna a definição um tanto subjetiva. Provar teoremas é a principal atividade dos matemáticos. É importante notar que "teorema" é diferente de "teoria".

Lilith gostava de algumas coisas. Poucas, mas gostava. Não eram grandes paixões. Teve alguns namorados que, pela simples falta de tato que a garota tinha, deixavam-na sem grandes explicações. Não que ela quisesse alguma explicação. Sempre fora uma pessoa não muito dada com as questões exteriores, preocupava-se em resolver o próprio teorema e o resto que viesse aos poucos. Os rapazes achavam-na atraente, com algumas qualidades medianas, mas, na hora de medi-las, percebiam que os defeitos hediondos pesavam mais, não permitindo que permanecessem por muito tempo ao seu lado. Não que ela se preocupasse, já que não nutria grandes paixões. Ela gostava de chuva, e do cheiro que os microorganismos exalavam em contato com a água que comumente chamamos de “cheiro de chuva”. Simploriamente ela até poderia dizer que isto lembrava a sua infância, mas na prática ela só gostava e pronto. Não era um alguém muito nostálgico que se apegasse à lembranças. Também gostava de batatas fritas e vinho branco seco, embora admitisse que fosse uma péssima combinação. Quando perguntada sobre livros, não tinha o hábito da leitura e tampouco abominava, mas simplesmente preferia curtir o tédio sem fazer nada, senão a própria definição de tédio seria perdida para sempre. Aliás, não é que ela gostasse do tédio, ela apenas era assaltada por ele de vez em sempre e não esporadicamente, mas comumente.

Lilith era entediada. Suspeita-se que toda a sua rotina desde a infância, percorrendo a adolescência, estendendo-se à fase adulta havia transformado-a em uma pessoa altamente enfadonha. Não que ela fosse chata, mas ela exalava o tédio. Nunca apareceu, nunca brilhou, e sequer quis aparecer ou brilhar e menos ainda se importava com esse tipo de coisa. Nasceu por nascer e continuou existindo ou por não ter nada melhor pra fazer ou, talvez, por pensar que não houvesse nada mais enfadonho do que viver. Do que viver.

Certa vez foi com sua família passar o reveillon em uma belíssima casa de praia a poucas quadras do mar. Os habitantes do local conservavam suas rotinas intactas desde antes de Lilith pensar em dar seu primeiro suspiro na face da Terra e, portanto, como sempre, o recinto era tranqüilo e silencioso, calmo e sossegado não como um túmulo – afinal os habitantes esporadicamente conversavam, andavam e respiravam -, mas quase como um. Inclusive as respirações pareciam obedecer a uma espécie de ritmo que era seguido à risca.

A mãe de Lilith estava varrendo o quintal enquanto vestia uma horrenda túnica cor de bege desmaiado, assim, quase desfalecendo. O pai de Lilith estava acomodado à rede e, se casualmente não suspirasse um pouco mais fundo, poderia bem ser considerado um defunto envolto em uma outra roupa esquisita e de cor clara. O filho mais novo do casal, um garotinho travesso e cheio de energia, estava emburrado porque ainda faltavam quinze minutos para a hora de brincar. Ora, ele gostava de brincar todas as horas, mas seus pais haviam chegado à brilhante conclusão de que brincadeira demais poderia prejudicar o caráter. Afinal, fazer coisas de que não se gosta ajuda a construir uma personalidade mais séria e centrada.  A própria Lilith estava sentada na mesa da varanda, trabalhando, notebook acomodado à sua frente, e a cabeça em qualquer outro lugar menos ali.

Levantou-se, deixou seus projetos abertos. Dirigiu-se ao portão da casa, três olhares diferentes sequer passaram em sua direção, uma vez que varrer o pátio, cochilar e esperar a hora de brincar era muito mais importante do que se dar conta de que havia uma pessoa passando para o lado de fora de casa sem avisar.

Lilith foi andando em linha reta em direção ao mar. A cada passo sua mente abria-se um pouco mais, e a cada pensamento novo dentre os muitos mais que pululavam à sua mente, um medo ela ia deixando para trás, um temor era exorcizado de seu coração. Não que ela tivesse tido muitos temores ou medos durante sua vida, afinal a rotina altamente regrada e seguida sagradamente não deixavam espaço para medos, não havia o horário do temor para ser posto em prática.

Prostou-se frente ao mar. O azul encheu os seus olhos. Sentiu-se livre. Finalmente livre. Tomada de uma excitação vinda sabe-se lá de onde, já que não nunca havia sentido uma coisa daquelas, apoderou-se de si, e então ela adentrou um pouco mais aquela imensidão. Molhou-se por completo. E então ela decidiu voltar. Não para casa, mas de onde havia saído e, em meio à tantas confusões e situações enfadonhas em sua vida, havia simplesmente se esquecido. Adentrou mais aquela quantidade infindável de água e, de repente, tudo ficou escuro e sufocante, tentou sair e não conseguiu e, de repente, por mais ar que faltasse aos seus pulmões, ela percebeu e pôde sentir que esta era a única decisão em sua vida que tomara totalmente em sã consciência, desprovida de tédio e de fadiga. Quis a luz, e a luz buscou. Tudo estava terminado.

Alguns dias depois, mais precisamente três dias, seus pais tiveram a grande idéia de procurar a polícia e comunicar que sua única filha havia desaparecido. Não é que lhe faltasse preocupação, mas tinham consciência de que as autoridades policiais jamais procuram supostos desaparecidos antes de completar três dias de sumiço. Eram pessoas entendidas da vida. A polícia bem que procurou. Passaram-se os anos e nada de Lilith aparecer. Aos poucos o ânimo de encontrá-la diminuiu até chegar ao esquecimento quase que completo. Ainda ficavam um pouco desconfiados de que talvez ela tivesse fugido para outro País, mas, não acreditavam que pudesse ter feito. Assim como veio, sem pretensão, sem vontade, sem tédio, ela se foi. E ninguém estava muito preocupado. Junto com Lilith, seus pulmões e o resto todo, afundou a resposta para seu teorema, a solução de tudo.

Era isso, e nada mais.

Nenhum comentário: